À Caça de Caçadores

À Caça de Caçadores

Madrid, 3 de julho de 2011

A minha vida é longa, mesmo no conceito de vida de um vampiro. Devo ser o mais velho vampiro existente. Digo-o sem orgulho. É apenas um facto. Somos seres imortais, mas podemos morrer. E morremos. “Então não são imortais”, dirão vocês. Eu direi que, poderemos viver eternamente, mediante certas condições. Tal como os seres humanos podem viver uma média de 80 anos, se observarem determinados procedimentos. O Sol é o nosso único verdadeiro inimigo. O fogo também nos pode aniquilar. Mas há ainda outra coisa que nos pode matar, mas falarei dela noutra ocasião.

Acordei cedo, mal o sol tinha desaparecido no horizonte. Levantei-me, tomei um duche, maquilhei-me com alguma generosidade, pois a minha pele já apresentava aquela brancura translúcida, ligeiramente acinzentada, que poderia levantar suspeitas, a uns olhos perspicazes. Não que isso me incomodasse, ou causasse algum embaraço aos meus planos, mas porque me dá prazer ser bela e apetecível. Vesti-me elegantemente e fui caçar. É na caça que encontro o verdadeiro êxtase. Todos os vampiros sabem isso. Uma longa sedução, que culminará num prazer breve, mas vibrante e compensador. Para vos situar, encantar, morder e sugar um humano, sentir a música da circulação do seu sangue, abandonar-me nela, deixar-me envolver pela sua louca melodia, equivale ao vosso orgasmo, quando fazem amor.

A minha caça estava preparada há alguns dias. Tão fácil de seduzir, tão pateticamente louco de desejo… Suguei-o até, quase, à sua última gota de sangue. Senti o seu coração bater, cada vez mais lentamente, até parar. Fiquei exausta. O meu corpo frio, atingiu uma temperatura quase humana. Sentei-me na borda da cama e apreciei a minha obra. Senti-me duplamente satisfeita. Extasiada. Estava feito. Morto, nu, deitado sobre a grande cama, num hotel de cinco estrelas, jazia um dos milhares de filhos da puta, que traficam adolescentes dos países de leste. São caçadores vorazes, cujo único objetivo é ganhar somas impensáveis de dinheiro, satisfazendo as necessidades esquizofrénicas e as paranóias sádicas, de gordurosos empresários, membros de governos, mediáticos dirigentes ideológicos, brutos banqueiros, certos membros da polícia e toda a espécie de vermes, que sentem prazer na crueldade. Este caçava crianças, algumas mal entradas na adolescência, para satisfazer violadores e sádicos, escondidos nas capas de respeitabilidade, que a estrutura social e o dinheiro lhes proporcionam. Quando estas crianças chegam perto da idade adulta, são irremediavelmente integradas em nojentas redes de prostituição. Este miserável, nunca mais ganhará dinheiro, com a dor e o sofrimento, dum seu semelhante. Este merdas, nunca mais sentirá o prazer de preparar a armadilha à sua presa.

Depois agi rapidamente. Desprezei as minhas impressões digitais, pois elas nunca seriam relacionadas com a minha atual identidade. Disfarcei os rasgões dos caninos, com alguns golpes hábeis, feitos com uma velha adaga. O facto do homem não ter sangue, era a minha assinatura. Um quebra cabeças para a policia. Sentei-me à secretária e, no papel de carta do hotel, escrevi algumas notas. Algumas palavras, que deveriam pôr as autoridades, na pista daquela rede de prostituição infantil. Embora, me dissesse a experiência, que essas notas seriam mais tarde arquivadas. Isto, porque uma investigação de rotina, levaria a nada e as autoridades, não poderiam dispensar pessoal, para correr atrás de uma ideia, sugerida por um assassino. Lavei as mãos e a adaga, com todo o cuidado. Depois abri a porta do quarto, percorri o corredor, desci as escadas, atravessei o quase deserto hall de entrada e saí para a rua. Ninguém me viu entrar. Ninguém me viu sair. Quanto muito, algumas pessoas mais sensíveis, poderão ter sentido uma ligeira deslocação do ar.

Há uns dois séculos a esta parte, salvo algumas exceções, caço fundamentalmente caçadores, homens cruéis, cuja ambição transformou em vis escroques da sociedade. Não, não me tornei um vampiro “bonzinho”. Os vampiros são vampiros e, quando são muito jovens, quando têm fome, medo, quando se sentem encurralados, ou, quando aqueles que amam, se encontram em perigo, matam feroz e indiscriminadamente. Eu não sou exceção. Sou o que sou. Apenas optei por viver a minha vida no seio da sociedade humana, e, ao longo dos anos, não me tornei um monstro amoroso – isso só existe nas mentes românticas e dadas a fantasias, dos humanos – tornei-me apenas mais responsável.

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  1. #1 by José Sousa on 12 de Junho de 2012 - 17:01

    Olá Letitia, como está? Gostei imenso do texto. Nunca até hoje tinha reflectido sobre como a responsabilidade pode assentar muito bem, pode ficar a matar, num vampiro. Um abraço

    • #2 by letitiamorgan on 13 de Junho de 2012 - 13:45

      Olá José, penso que no presente caso, “ficar a matar” é perfeito! 😀 😛
      Muito obrigada por estar aqui.
      Abs.

  2. #3 by sanfran34 on 12 de Junho de 2012 - 23:56

    Amei. Não se trata de um simples conto de vampiros, tem um toque especial, tem um diferencial. Muitos contos se assemelham a outros por causa das características básicas sabidas num vampiro.
    Sugar o sangue de um desgraçado criminoso até a última gota foi incrível. Parabéns!

    Sandra F.

    • #4 by letitiamorgan on 13 de Junho de 2012 - 13:47

      Sandra, fico muito honrada com o teu comentário, muito obrigada!

  3. #5 by Ivani Medina on 13 de Junho de 2012 - 1:28

    Letitia

    Percebo que a temática dos crimes contra as mulheres lhe atrai. É bom que seja assim, porque você escreve muitíssimo bem e disto é importante se falar. Parabéns. Sempre seu fã.

    • #6 by letitiamorgan on 13 de Junho de 2012 - 13:58

      Bem, na verdade esse tema não me atrai, revolta-me. Não me impressiono com um enforcado, ou com um esquartejado ou com sujeito que ficou sem metade da cabeça com um tiro de caçadeira, mas fico com a alma a sangrar quando vejo o olhar vazio, sem vida, de uma mulher diariamente maltratada, ou de uma criança violada.

      Fico muito honrada com a sua presença aqui no meu espaço, pois o senhor é um escritor admirável. Muito obrigada.

  4. #7 by Ebrael Shaddai on 13 de Junho de 2012 - 4:30

    Paradoxal, u vamiro que caça seus algozes…caçador seria o que? aquele que persegue ou aquele que espreita, hein? Informação é tudo, quem tem a informação está um passo à frente, ou logo atrás de você, depende do ponto de vista! kkk

    • #8 by letitiamorgan on 13 de Junho de 2012 - 14:02

      😀 😀
      Estou farta de rir!… Na verdade a posição é completamente relativa, mas por questões práticas, penso que o passo atrás é mais eficaz. 😛

      • #9 by Ebrael Shaddai on 13 de Junho de 2012 - 15:30

        Eu também estou farto de rir…pela ambiguidade e vacuidade de sua resposta. Eu poderia aplicá-la, inclusive, a uma redação primária da primeira edição do ENEM….

        • #10 by letitiamorgan on 13 de Junho de 2012 - 16:41

          Bem, Ebrael, eu estava a pensar na posição da jugular. 😀
          Quanto à redação ser primária e infantil, e, se quiser, brejeira, ela apenas foi motivada por algum pensamento mais ligeiro, peço desculpa.

          • #11 by Ebrael Shaddai on 13 de Junho de 2012 - 17:42

            Entendi, agora sim entendi! Peço-te desculpas também, se acaso te entendi mal.

  5. #12 by Antonio Carlos Muniz Macedo on 13 de Junho de 2012 - 15:04

    Sigo acompanhando as narrativas com um misto de satisfação poética, que é implícita no texto, com a satisfação de ler palavras escritas com grande rigor estético, sem contar as estórias eletrizantes que mexem com o nosso imaginário.
    Abraços fraternos

    • #13 by letitiamorgan on 13 de Junho de 2012 - 16:44

      António, muito obrigada pela sua colaboração e simpatia!
      Grande abraço.

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